Como abolir a policía: as lições de Rojava

Nos últimos dias, vimos outro caso horrível de brutalidade policial surgir nos Estados Unidos com o assassinato absurdo de George Floyd.

Após uma resposta policial inadequada, seguiu-se um indignação pública. Motins e protestos em massa ocorreram em várias cidades e continuam a acontecer. O grito comum dos oprimidos gira em torno da ideia de “sem justiça, sem paz”.

A verdadeira questão é como pode um sistema, profundamente arraigado numa história sangrenta, fundada na supremacia branca, no capitalismo e no neoliberalismo, conhecer uma justiça verdadeira e significativa? Há quem defenda a reforma da polícia. Outros apelaram para a redistribuição dos fundos. Alguns têm argumentado que a abolição da polícia é a melhor opção. Muitos, mesmo à esquerda, não conseguem imaginar que tal sistema seja viável. No entanto, tal sistema já existe na Rojava, a região autônoma e auto-administrada no norte da Síria. Em Rojava, as forças combinadas do Assayish e das Forças de Defesa Civil (HPC) trabalham em conjunto para proporcionar segurança e proteção para a comunidade. O Assayish opera como controle de tráfico, prende criminosos, protege vítimas, serve como segurança nos principais prédios do governo e controla o fluxo de pessoas e bens de um cantão para outro.

Os HPCs, por outro lado, são pessoas de um determinado bairro, treinadas em segurança básica. Eles só patrulham seu próprio bairro, a menos que estejam protegendo as pessoas durante festivais, cerimônias de mártires, eventos locais e vigílias noturnas. O propósito de ambas as forças é explicitamente proteger as pessoas, especialmente de ameaças externas, como as forças terroristas. São sempre os HPCs que protegem seu bairro, nunca o Assayish.

As possibilidades de instituir hierarquias de poder e autoridade são significativamente reduzidas com este método alternativo. O povo protege o povo, com quem convive e interage no dia-a-dia. A proximidade das “forças de segurança” com a comunidade, que vem do seu próprio bairro, garante que as infrações não ocorram. Onde elas ocorrem, os mecanismos comunitários de justiça, honra e restauração são imediatamente ativados através das comunidades vizinhas. O monopólio deste processo é evitado ainda mais incentivando a participação de todos através de um sistema de cadastro. Qualquer um pode ser voluntário. Isto inclui os idosos, particularmente as mulheres, como fontes de proteção civil.

Não há nada mais poderoso, nada que restaure a alma de uma comunidade traumatizada e dilacerada pela guerra, do que ver as matriarcas do seu bairro com confiança, nas esquinas das ruas, empunhando AK-47s, para a proteção do povo. Ao contrário das imagens aterrorizantes da brutalidade policial nos EUA, essas imagens não inspiram medo e terror. Eles inspiram confiança, orgulho, auto-estima e pertencimento à comunidade. É claro que em Rojava os idosos têm que assumir mais responsabilidades devido ao fato de que a maioria dos jovens homens e mulheres têm lutado na linha de frente da guerra contra os terroristas do ISIS.

A ecologia social deste sistema é protegida pela promoção da participação das mulheres, do profundo respeito ao multiculturalismo e da sacralidade da ecologia. Este sistema é estabelecido através de esforços concertados e repetidos para a democratização, educação e desaprendizagem dentro da sociedade das hierarquias patriarcais, sociais, políticas, econômicas e culturais. Não basta criar instituições alternativas sem trabalhar em esforços educacionais significativos dentro da sociedade. Esta é a única maneira pela qual mudanças de longo prazo, significativas e orgânicas, possam ocorrer.

As pessoas frequentemente entram nas academias por um, dois ou três meses. Isto é baseado no voluntariado, mas também em cada ramo da instituição governamental. Por exemplo, o Ministério da Educação formará um grupo de 30 professores de cada vez para entrar nas academias. As pessoas continuam a ser pagas durante este processo.

Mulheres com filhos podem levá-los a uma creche gratuita enquanto passam semanas aprendendo sobre deveres cívicos, direitos democráticos, libertação de gênero, sustentabilidade ecológica, sobre capitalismo, e muito mais. Todos participam da limpeza diária, da cozinha e do gerenciamento do centro educacional enquanto estão lá.

A convivência comunitária é promovida como um esforço deliberado e consciente para reorganizar e reformular uma sociedade. Esses mesmos membros da classe retornam à comunidade e se juntam às Assayish, aos HPCs, às comunas, cooperativas e prefeituras locais. As pessoas são encorajadas a participar em múltiplos níveis de processos de tomada de decisão.

No entanto, mesmo antes do estabelecimento desse sistema alternativo ser possível, uma ideologia alternativa precisava emergir para dar um esboço a essa concepção de sociedade democrática. Este sistema funciona com base na teoria do confederalismo democrático, do líder curdo Abdullah Öcalan, inspirado na ecologia social do teórico americano Murray Bookchin.

Um dos valores fundamentais do confederalismo democrático é uma abordagem anti-hierárquica das estruturas comunitárias e de convivência, a começar pela difícil tarefa de promover a libertação e a participação das mulheres em todas as esferas do espaço público. A participação das mulheres deve ser de 40/60% cento em todas as estruturas administrativas e de tomada de decisão. Isto inclui também o sistema de co-presidência de todos os cargos de liderança, ocupados por um homem e uma mulher. Em essência, um sistema baseado na promoção ativa da igualdade nos processos étnicos, religiosos e decisórios é fundamental para que esse sistema anti-hierárquico funcione.

Este sistema também é estabelecido com base no fato de que instituições com alto nível de participação das mulheres tendem a ser mais inclusivas e democráticas. De acordo com Öcalan: “A medida em que a sociedade pode se transformar completamente depende da extensão da transformação alcançada pelas mulheres. Da mesma forma, o nível de liberdade e igualdade das mulheres determina a liberdade e igualdade de todos os setores da sociedade. Portanto, a democratização das mulheres é decisiva para o estabelecimento permanente da democracia e do laicismo. Para uma nação democrática, a liberdade da mulher também é de grande importância, pois as mulheres emancipadas constituem a sociedade emancipada. A sociedade emancipada, por sua vez, constitui uma nação democrática”.

A orientação ideológica de Rojava tenta subverter tudo o que sabemos sobre o Estado, sobre a paz, a libertação e a coexistência. É explicitamente anti-hierárquica em todos os sentidos.

Desde o início do sistema de Westfália, minorias divididas e colonizadas têm vivido sob Estados-nação artificiais e autoritários. Um sistema hierárquico, violento e excludente que ensina que a diversidade é a antítese do patriotismo e do nacionalismo. A diversidade deve ser sacrificada no altar sangrento do Estado-nação com um idioma, uma bandeira, uma identidade, um mito nacional. Essa história ensinou aos oprimidos, aos despossuídos e aos apátridas que só um Estado pode trazer libertação. No entanto, esse processo naturalmente levaria à opressão de outras minorias que ficariam dentro das fronteiras daquele Estado.

Ao invés disso, através de Bookchin e Öcalan, surgiu um plano alternativo no qual os ódios primordiais e as divisões etnográficas e religiosas há muito estabelecidas poderiam ser abordados através do modelo radical de base do confederalismo democrático.

O confederalismo democrático une o rico mosaico de culturas e religiões em uma sociedade enriquecida que prospera na diversidade, ao invés de tentar apagá-la para servir aos interesses de um grupo dominante em particular.

Muitos esquerdistas cometeram o erro de dizer que isso implica que todas as expressões de identidade nacional devem ser apagadas. Que todo “nacionalismo” curdo, armênio, assírio e yezidi não deve se expressar. Esta é uma perspectiva profundamente orientalista e centrada no ocidente. Pedir a um Yezidi para deixar de ser Yezidi, ou aos curdos para deixarem de ser curdos, simplesmente serve aos interesses das forças imperiais e genocidas que estabeleceram suas ideologias fundamentais sobre a eliminação das minorias profundamente oprimidas.

Em Rojava, isso significa que todas as culturas devem viver livremente, expressando a rica beleza de suas antigas culturas e cores, com outras culturas igualmente livres. Significa patriotismo ter orgulho da própria identidade, combinado com mecanismos descentralizados de convivência baseados no desmantelamento ativo das hierarquias de poder. Isso significa respeito explícito ao multiculturalismo, não pedindo às minorias etno-religiosas colonizadas e oprimidas que formem uma “cidadania” alternativa baseada na negação de tudo o que lutaram para preservar através de séculos de assimilação forçada.

Em Rojava se argumenta que a diversidade é essencial e a espinha dorsal de uma nação democrática.

Em Rojava, as três línguas dominantes são ensinadas nas escolas, incluindo o curdo, o árabe e o siríaco. Os sinais de rua são escritos nos três idiomas. As minorias, como os armênios, têm capacidade de decisão adicional e “assentos” adicionais nos conselhos de decisão para garantir que a regra da maioria não funcione sempre em detrimento das minorias. As igrejas destruídas são ativamente reconstruídas e os festivais multiculturais são promovidos: arte, cultura, música, literatura de diferentes culturas exibidas lado a lado.

A diversidade é promovida, apoiada, encorajada, celebrada em vez de apagada, temida ou assassinada.

Neste sistema, as pessoas também são encorajadas a se engajar com a sociedade civil para que interesses e necessidades sejam expressos através de mecanismos alternativos que não sejam de natureza etno-religiosa. Essa reorientação cívica só funciona quando as pessoas não se sentem ameaçadas por causa de suas identidades culturais. Desta forma, evita-se a alienação, a fragmentação e as inquietações coloniais, criando múltiplas vias interligadas de pertencimento e expressão política.

A participação política e cívica também é incentivada e esperada. A despolitização, a apatia e a não-participação são vistas como a antítese de uma sociedade democrática.

Portanto, este sistema recria o corpo cívico ao longo de uma psicologia de libertação diferente. Desmantela ódios e opressões internalizadas contra si mesmo e contra os outros. Desmancha as práticas colonialistas e capitalistas de “alteridade” e “apagamento”, no que Eduardo Galeano chama de “os nada”. Estes nada são menos que o outro. São “os nada: os filhos dos nada, os donos do nada… os não-corpos, correndo como coelhos, morrendo pela vida, fodidos em todos os sentidos”.

Para que qualquer ideologia de libertação tenha sucesso, ela deve recriar um Ser, alguém que se tornou o outro, os não-corpos.

Rojava desmontou todas as formas de racismo ou estruturas de classe ou preconceitos de gênero ou outras práticas discriminatórias? Certamente não, mas ela está ativamente reestruturando a sociedade para que ela possa evitar e eliminar essas opressões na busca de uma sociedade verdadeiramente democrática. É importante, portanto, não romantizar Rojava, mas olhar racionalmente para como as coisas funcionam, o que não funciona e que emendas são necessárias. A inovação é tão essencial quanto evitar o dogmatismo, que é vital para a realização de uma sociedade justa e democrática. Nas palavras de Bookchin, “se não fizermos o impossível, seremos confrontados com o impensável”.

A lição essencial é que o mundo alternativo que imaginamos já existe e funciona, ferido e abandonado, mas ainda respira; apesar da falta de apoio da esquerda internacional, apesar das repetidas invasões, anexações, colonização, limpeza étnica e o uso de armas químicas ilegais contra ela pela Turquia e suas forças terroristas.

A desumanidade e a violência vivida pela comunidade negra nos Estados Unidos tem sido profundamente chocante e traumática para aqueles com consciência e para aqueles que desejam construir comunidades baseadas no respeito mútuo, na humanidade, na cooperação e no apoio. Para que uma sociedade tão alternativa surja em lugares como os Estados Unidos, as revoluções dos povos do Terceiro Mundo devem ser levadas mais a sério, estudadas e emuladas ativamente. Lições devem ser aprendidas, perguntas devem ser feitas, ideias devem ser trocadas e mudanças inovadoras devem ser implementadas para se adequar à estrutura sócio-política específica de diferentes sociedades.

Toda a ecologia social do sistema americano tem sido afetada pela pobreza maciça, disparidade de renda, perda de salários, falta de assistência médica, falta de moradia, encarceramento em massa, ecossistemas destruídos e água potável envenenada. A captura e prisão não só de Derek Chauvin, mas dos outros três policiais responsáveis pelo assassinato de George Floyd, só pode atuar como um esforço simbólico em prol da justiça. A brutalidade policial está ligada a uma prática sistemática de múltiplas camadas de intersecção de violência, opressão e injustiça. Devemos nos perguntar como é a verdadeira justiça. Aproximar-se dela é nada menos que reverter todo o sistema injusto.

Como curdos, vemos em todo o Oriente Médio como as comunidades negras estão insurgindo nos Estados Unidos. Animamos sua coragem revolucionária, seu inabalável compromisso com a justiça e seu desejo de liberdade; seu grito de justiça ressoa em nossos próprios corações, ambos batendo o tambor da liberdade negada; e mesmo que nossas correntes sejam diferentes, finalmente enfrentamos o mesmo sistema opressivo que continua nos matando e nos impondo várias formas de violência.

Em Rojava nós asseguramos que um outro mundo é possível. Agora devemos deixar que a solidariedade seja a ponte que nos une.

Para leer el artículo en español, click aquí

FUENTE: Hawzhin Azeez / Green Left / Traducción al portugués: Terra Sin Amos Editora / Fecha de publicación original: junio de 2020

Be the first to comment

Leave a Reply

Your email address will not be published.


*