Instruções para a ocupação de um territorio

Nas vésperas do sismo que assolou a Turquia e Síria, o fotojornalista Maurício Centurión ilustrou para o Jornal MAPA o cenário de destruição que encontrou em Zirgan, povoação sob administração autónoma curda, e constante alvo da artilharia turca nos últimos 4 anos. A tragédia do terramoto coloca todas as prioridades no socorro às populações – os desastres naturais não fazem distinções culturais – mas o retrato de Zirgan exemplifica como as dimensões da tragédia, carregam um peso dramático nas regiões sírias e de Rojava, onde a desestabilização e as sequelas de anos de guerra estão presentes.

A destruição e as deslocações forçadas na povoação de Zirgan, em Rojava, têm vindo a afectar a população há meses. A paisagem de escombros por toda a aldeia não foi causada pelo terramoto que afectou tantas vidas em território turco e sírio, mas sim por uma guerra constante por parte do exército de Ancara.

Zirgan está vazia, apenas o vento gelado parece encontrar o seu caminho por entre os buracos que os ataques turcos deixaram por todo o lugar. De 20 de Novembro a 15 de Dezembro houve tantos ataques que um terço da população deixou a povoação. Procuraram segurança com familiares que viviam em aldeias próximas ou indo para os campos de refugiados, geridos pela Administração Autónoma para o Norte e Leste da Síria (AANES), os quais estão na sua capacidade limite desde que Ancara intensificou os seus ataques.

Esta povoação pertencente a Rojava, no cantão de Heseke, está localizada no norte da Síria. Dois quilómetros a norte, faz fronteira com a primeira base militar da Turquia, da qual provêm todos os ataques da artilharia; a dois quilómetros a oeste, com as bases do Exército Nacional Sírio (ENS), cujos membros os curdos chamam de “Chetes” e acusando-os de serem mercenários a mando de Ancara. Devido aos frequentes ataques e à ameaça de uma invasão em grande escala, esta área é considerada, em linguagem militar, uma das frentes de batalha.

A manhã ainda não se mostra totalmente, o sol ainda escondido por grandes nuvens. Cerca de 30 pessoas fazem fila à porta de uma padaria à espera que o típico pão fino redondo da Rojava, chamado “nan”, esteja pronto. Talvez a dois mil quilómetros de distância, um comandante turco ordena aos seus soldados que carreguem a sua artilharia, apontem para onde, graças aos drones, sabem que a padaria está, e disparem. «Os seus ataques são pensados. Em poucos dias atacaram a torre da Internet, a torre de electricidade e o depósito de água, a mesquita, a padaria e um parque onde as crianças brincam. Dias mais tarde, atacaram um hospital pediátrico e diversas vezes atacaram o gerador com o qual fornecemos energia à povoação quando não há electricidade», conta-nos Harun.

O escritor polaco Richard Kapuscinski relata no seu livro “Mais Um Dia De Vida” (1976), sobre a luta de libertação de Angola, o protagonismo de uma pessoa que arranjava o tanque de água cada vez que este era atacado. Ele diz que sem ele, a aldeia ficaria desabastecida e teria de se render. Harun ocupa um papel semelhante em Zirgan, ele é o único que sabe reparar o gerador que fornece luz a toda a povoação e que já foi atacado duas vezes. «Eu poderia ter partido, pensei nisso muitas vezes, mas se eu partir, as pessoas que estão a resistir podem ficar sem luz. Não posso fazer isso, vou ficar até ao fim e vou consertar o gerador tantas vezes quantas forem necessárias. Vou e volto, tenho a minha família num lugar seguro, quando estou com eles dizem-me que por favor não voltes, é perigoso, mas tenho de ajudar a minha comunidade. Há um ditado em árabe que diz “o que vale a pena se abandonares a tua própria terra”. Digo-o a mim próprio todas as manhãs».

«Muitas pessoas teimosas permaneceram até ao segundo ataque, até ao terceiro ataque. Muitas pessoas partiram quando atacaram o jardim e a escola, isso criou um grande medo às crianças. Apenas uma pessoa ficou ferida nesse ataque, porque aprendemos com o tempo a proteger-nos, a esconder-nos, a organizar-nos calmamente quando ouvimos o primeiro estrondo. Não é que um se habitue, há sempre medo, mas há algo na sobrevivência que faz que te protejas e vás ganhando experiência após quatro anos com a guerra por perto», diz Ali, que era contínuo na escola que foi atacada a 30 de Novembro e que agora está vazia e cheia de escombros.

«A escola foi o limite para muitas famílias», diz Hale, uma vizinha árabe que faz parte do Conselho de Auto-Governo em Zirgan, acrescentando: «O governo turco não faz distinção entre militares e civis, faz isto para nos fazer sair e ganhar território. Desde Maio de 2022 que a Turquia tem vindo a antecipar uma futura invasão e depois de culpar os Curdos pelo atentado em Istambul, anunciou publicamente que iria avançar até nos destruir».

Ao seu lado, Ahmed convida-nos a entrar na sala principal da comuna. No centro da sala está pendurado um retrato de Abdullah Öcalan, o líder curdo encarcerado na Turquia desde 1999. Ao lado da imagem, há um buraco na parede que deixa entrar o sol. Ahmed aponta e diz: «Foi um ataque de artilharia, lá fora até há um míssil que não explodiu». «Continuamos a encontrar-nos, lá fora e dispersos, de manhã e durante algumas horas, porque precisamos de nos encontrar e continuar a resolver os problemas da nossa gente», explica.

O espaço principal da administração autónoma foi atacado cinco vezes. Após o segundo ataque, as pessoas voltaram ao trabalho, mas depois foi impossível continuar devido à destruição do local e ao perigo de outro ataque.

Dois meses depois a paisagem é de devastação e desolação, e no início da manhã as primeiras pessoas aparecem de passo apressado, sacos nas mãos e de olhar inquieto. À medida que a tarde começa a cair, desaparecem, como que se indo por pontes invisíveis para um lugar mais seguro. Deixando a povoação novamente vazia. «Muitas pessoas que partiram voltam para regar as suas plantas e alimentar os seus animais, quase toda a população vive do trabalho nos campos, vão para os campos de refugiados, mas regressam, algumas delas todos os dias; é difícil deixar a tua casa, a tua terra, porque é também o seu único meio de subsistência», diz Helil, que estava responsável pela organização política das mulheres na sua aldeia e agora regressa todos os dias para realizar diferentes actividades exigidas pela situação actual. O som da água a ferver interrompe-a, pega numa chaleira de água em cima do fogão a diesel, serve chá e continua o seu relato: «As pessoas estão perto da guerra há quatro anos, sabem como se mover, sabem quando voltar, e há aqueles que, cansados, escolheram não voltar e deixar as suas casas». Em 2019, a Turquia ocupou Serekaniye com a ajuda do Exército Nacional Sírio (ENS), deslocando 50.000 pessoas. «Temos um exemplo muito particular de duas pessoas idosas que vivem perto da fronteira turca. Decidiram ficar até ao fim, dizem que não tencionam mudar-se. Tentamos chegar perto deles com muito cuidado, quando podemos, e levamos-lhes as coisas necessárias, combustível, pão, comida. Dizem-nos que na sua idade não vão a mais lado nenhum». Termina Helil.

Um comandante das Forças Democráticas Sírias (FDS) dá-nos as boas-vindas num escritório improvisado, cheio de mapas pendurados na parede. Caminha e fuma enquanto nos dá a entrevista, e cada vez que nomeia um lugar, aponta para ele com um dedo nas geografias que delimitam a sala. «Todas as pessoas nesta zona são árabes, assírios, e para além disso muitos internacionalistas de todo o mundo que vieram para nos ajudar em tarefas médicas ou militares. Eles podem ter muita tecnologia, mas os seus soldados recebem um salário, é um trabalho, são mercenários e mais cedo ou mais tarde sabem que estão a matar o seu povo, os seus irmãos. Não temos tecnologia, mas temos uma causa muito maior que nos dá força: saber que estamos do lado das pessoas que lutam pela liberdade de todos».

Logo após os ataques do primeiro dia terem destruído a sua casa, Muhammad levou os seus filhos para o campo de refugiados. Dias depois, quando a calma parecia regressar, regressou no seu carro carregado de tijolos. Sozinho, e um pouco desajeitado, começou a empilhar tijolos para preencher os buracos deixados na sua casa pelos ataques, quando foi interrompido por um estrondo a cem metros de distância, levando-o a abandonar a tarefa. Os tijolos ainda estão empilhados, à espera que Muhammad os cimentasse juntos.

Em finais de Novembro, as intervenções telefónicas dos Estados Unidos e da Rússia pareciam deter a invasão turca às povoações de Rojava, mas a calma durou pouco e os ataques continuam diariamente em algumas áreas, e de forma intermitentemente e com drones em todo o território. A 6 de Fevereiro, um dia após o terramoto, num contexto de caos e desespero pelas vidas ainda sob os escombros, a Turquia atacou novamente a cidade fronteiriça de Tell Riffat, alegando que se tratava de um ataque de resposta.

FUENTE: Mauricio Centurión (Texto e fotografías) / Mapa

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