A próxima guerra de Rojava será la última

Escrito por um internacionalista brasileiro em Rojava

O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, anunciou nesses dias uma nova operação no norte da Síria, para expandir seu projeto de uma “zona de proteção” com uma profundidade de 30 km e ao longo de toda a fronteira entre os dois países. O objetivo é expulsar dessas áreas a “atividade terrorista” do PKK.

Em 2018 e 2019 duas operações desse plano foram conduzidas, resultando na ocupação das áreas de Afrin, Serekaniye e Gire Spi. Em meio à resistência e ao sacrifício de muitos combatentes das Forças Democráticas Sírias, aos ataques de civis e ao enorme fluxo de refugiados, nessas operações pode-se ver a enorme presença de combatentes ex-ISIS nas gangues jihadistas usadas pela Turquia como principal força de terra.

É curioso como as definições de terrorismo e democracia, ao mesmo tempo que marcam nosso período histórico são de uma ambiguidade tão grande!

O Estado Turco, integrante da OTAN que se diz defensora da democracia global, conduz uma guerra encarniçada contra aquilo que define terroristas, usando fanáticos e mercenários que ficaram famosos por seus atos de violência e massacres enquanto chamavam-se ISIS – e tudo isso é claro sem poupar recursos e despesas enquanto a crise econômica assola o próprio país.

https://twitter.com/rev_curdistao/status/1542927294464925697

A partir dessas evidentes contradições é possível traçar uma análise coerente da verdadeira situação, enquanto a maioria dos canais da mídia corporativa repetem manchetes privadas de conteúdo.

A experiência da Revolução de Rojava, a Revolução das Mulheres, está prestes a cumprir seus dez anos de existência e resistência. A experiência da Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria e da Federação Democrática do Norte da Síria, com seu conteúdo e prática de democracia a partir do envolvimento direto e da inclusão dos diferentes povos e etnias, com o desejo de superar o capitalismo, põe uma ameaça concreta ao governo fascista de Ankara, que cada vez mais vê-se impossibilitada de negar a existência de outras identidades dentro de suas próprias fronteiras.

Envolvidas com o conflito na Ucrânia e em ameaçar-se mutuamente, Rússia e OTAN irão aceitar negociar com a Turquia usando o sangue dos curdos, árabes, armênios, assírios e turcomenos, como moeda de troca. Para a OTAN a prioridade é cercar a Rússia com o adesão da Suécia e da Finlândia, e para a Rússia o acesso ao Mar Mediterrâneo e a venda do grão ucraniano, que a Turquia promete garantir e comprar.

Isso pode-se perceber lendo a maioria das notícias. Mas não é muito nisso que estou pensando agora.

Em 2018 e 2019, após muita resistência, nossas forças acabaram por retirar-se para evitar um massacre. Mas agora, com mais um ataque, com a intenção do inimigo baseada na aniquilação e o já restrito território, para onde iremos? Para onde irão os novos milhares de refugiados? Atrás de nós resta apenas o deserto. Por isso a próxima guerra será a última guerra de Rojava.

Há muitas implicações geopolíticas nisso, mas não é no que estou pensando agora. É uma manhã quente, e enquanto os ventiladores de teto giram lentamente, após a análise da situação política as diferentes delegações das comunas começam a apresentar seus pontos de pauta. A maioria são problemas imediatos relativos à falta de luz, água, pão e gasolina. Enquanto isso meu cérebro gira como os ventiladores entre o ar dessas questões e o ar da possibilidade de guerra.

Penso na pequena Dendik que tem cinco anos e nasceu com apenas metade do coração mas que não economiza em sorrisos e brincadeiras, apesar de ser bastante suscetível. Penso na pequena mas um pouco mais velha Tirî que não tenho certeza se de fato entendeu como funciona o Jogo da Velha, mas que parece ter encontrado uma maneira de se divertir jogando e que sempre me pergunta quando irei visitá-la novamente. Penso em suas mães que apesar de uma vida dentro de casa encontraram dentro de si a capacidade para organizar essa revolução.

Penso em toda a movimentação agitada de um dia de reunião, no vai e vem de pessoas, atividades e discussões. Penso na academia de arte e cultura para mulheres jovens, em toda aquela criatividade e liberdade que senti ali. Penso na senhora que quando criança, muitos anos atrás, desenhou a bandeira do Curdistão na escola e foi punida por isso… e hoje trabalha organizando um conselho que reúne vinte comunas, e que não recuou nem mesmo frente ao ISIS. Penso nos rapazes com quem convivi por um tempo e que após o serviço militar querem apenas voltar a trabalhar e casar-se com suas prometidas.

Penso em todas essas vidas e pequenas coisas que nunca saem nas notícias, em nenhuma análise e em nenhum slogan. E tudo isso corre o risco de desaparecer sob os bombardeios. É possível que o mundo siga igual se Rojava desaparecer?

O desaparecimento de Rojava seria como o desaparecimento de uma estrela. Apesar de imenso, o mundo ficaria com uma luz a menos, com menos esperança. Se o Estado Fascista Turco avançar, será um avanço mundial do sistema de morte e opressão.

Por isso temos que lutar. Porque a democracia dos povos, a liberdade e a vida com dignidade que estamos defendendo aqui não é muito diferente daquilo que hoje na América Latina e no mundo estão também ameaçados pelo neoliberalismo e pelo patriarcado.

Essa guerra é uma guerra mundial.  Como uma vez disse a companheira internacionalista que caiu mártir Sara Dorşim: essa guerra é nossa responsabilidade, nossa decisão e nossa determinação.

Com a Guerra Popular Revolucionária será possível parar o inimigo, resistir até que o custo da guerra torne-se elevado demais e seja portanto obrigado a recuar. As consequências disso irão sem dúvida fragilizar o já fraco governo Erdogan, e colocando em pauta uma resolução política e dialogada da questão curda e do respeito à autonomia de Rojava.

Agora é a hora da solidariedade, é a hora de que os povos e movimentos, comunidades e organizações levantem suas vozes de luta com o mesmo espírito que ecoou pelo mundo durante a batalha de Kobanê. Manifestem-se da maneira que puderem, nas ruas e nas redes, com cartazes, vídeos, declarações, e ajudando a difundir a informação, especialmente traduzindo já que muita coisa sai em inglês e não em português e espanhol. E é claro, também seguir lutando e se organizando nos próprios territórios construindo alternativas libertárias e poder popular, é também de fundamental importância.

Eu não sei se podemos vencer esta guerra. Mas sei que devemos impedir o inimigo de ganhar. E enquanto seguiremos nesse caminho, sem buscar atalhos e nos rendendo ao reformismo, sei que lutar será o suficiente pois pelo menos não teremos perdido tudo e continuará a brilhar a estrela da esperança e da dignidade.

Resistência é vida!

Com os oprimidos, contra os opressores…SEMPRE!

A todas e todos um forte abraço.

Rojava, 10 de junho de 2022

FUENTE: Terra Sem Amos

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